miércoles, 29 de abril de 2015

Nº2 "Casi lo mismo. Alrededor de la traducción" : Sopa Paraguaia

Por Nestor Perlonguer


A publicação de mar paraguayo, de Wilson Bueno, coloca-nos diante de um acontecimento. Os acontecimentos costuman chegar em silencio, quase imperceptiveis, somente os mais avisados os detectam. Mas, uma vez que se instalam, que tomam lugar, è como se esse lugar lhes tivesse sido destinado desde sempre. Tudo parece igual, porèm, de uma maneira sutil, tudo se modificou. O acontecimento provocou uma alteração nos hábitos rotineiros, acaso nos ritmos cósmicos; uma perturbação que tem um não sei que de irreversible, de definitivo.
Neste caso o acontecimento passa pela invenção de uma lengua. A imitação e a invenção representam, diria Gabriel Tarde, grandes paixões (práticas) dos homens. Será que foi realmente Wilson Bueno quem “inventou” o portunhol (um portunhol malhado de guaraní, que realiza po debaixo, na medula palpitante da lengua, aquilo que o poeta argentino- ou, melhor, correntino- Francisco Madariaga invocava do alto de um úmido surrealismo lujurioso: gaúcho-beduíno-afro-hispano-guaranì); ou, do seu Altazor artìstico, ele o pegou, o foi tomando de um ou outro trecho de conversa, banal, boba, com a cuia na mão e a “china” (ou a gringa…) passando o chimarrão, em cadeirinhas de palha, no quintal atrás da cozinha. Ele o foi pegando em português e em español 8onde tem o sentido de “colar”), foi deixando que entrasse por um ouvido sem que pudesse sair pelo outro. Embora pareça surpreendente, Wilson Bueno tem algo de Manuel Puig (porque a sua escritura se baseia na conversa, ela joga conversa fora), e tambêm algo de cronista, pois recolhe un modo de falar bastante difundido: prácticamente todos os hispanos-americanos residentes no Brasil usam os inconstantes, precários, volúveis achados da mistura de lenguas para expressar.
Essa mistura tão imbricada não se estrutura como um código predeterminado de significação: quase diríamos que ela não mantém fidelidade esceto a seu própio capricho, desvio ou erro.
O efeito do portunhol é imediatamente po´tico. Há entre as duas lenguas um vacilo. Uma tensão, uma oscilação permanente: uma é ou “ erro” da outra, seu devir possivel, incerto e improbable. Um singular fascínio advem desse entrecruzamento de “desvios”
(como diria um lingüista preso à lei). Não há lei: há uma gramática mas é uma gramática sem lei; há uma certa ortografía, mas è uma ortografía errática: chuva e lluvia (grafadas de ambas as maneiras) podem coexistir no mesmo parágrafo, só para mencionar um dos incontáveis exemplos.
Mescla aberrante, mar paraguayo tem algo de sopa paraguaia. Tal prato não bóia, como poderia-se supor, na água do caldo: é uma espécie sui generis de omelete ou empanada. As ondas desse mar são titubeantes: não se sabe para onde vão, carecem de porto ou Romeiro, tudo bóia, como uma suspensão barroca, entre a prosa e a poesia, entre o devir animal e o devir mulher.
Em toda a extensão do frondoso Mar paraguayo- associável a um poema épico-escolar: “incomensurável, aberto e misterioso a seus pés”, do romântico rio-platense
Esteban Echeverria- a poesia nos espia, pula sobre nosso colo como um cachorrinho- o microscòpio Brinks- ora brincalhão..cabe lembrar, por ejemplo, que em español sin, ao invés de sim”, quer dizer “sem”, com o qual se retira da afirmação a sua exitencia. Algo infinitamente cômico espreita do mesmo modo, na substituição de son (são) por san (santo).
A comicidade desenfreada, não provocada, mas filha “natural” do próprio amálgama lingual, é, ainda, outra marca deste inquietante texto. Experiência de vanguarda, cabe compara-lo, talvez, ao Catatau de Paulo Leminski (significativamente, também paranaense) e, mais além, mais ousadamente, a Larva de Julián Rios: todos eles brincam com a língua, inventando ou reinventando-a. Mas se em Catatau há um fundo de alta cultura, que, a despeito dos desmoronamentos, destruições e reconstruções, impregna o subtexto, no livro de Bueno esse fundo é cômico (um riso patético, desgarrado), é a tragicomédia das misérias cotidianas encarnada nos deslizes dos idiomas, um que de telenovela trágica que caba mal ou não acaba... Claro que tudo dotado de maior densidade, espessa: pode até soar divertido, mas não se trata de nenhum divertimento.

O mérito de Mar Paraguayo reside exatamente nesse trabalho microscópico, molecular, nesse ente-línguas (ou entre-ríos) a cavalo, nessa interminaçao que passa a funcionar como uma espécie de língua menor (diriam Deleuze e Guatari), que mina a impostada majestosidade das línguas maiores, com relação às quais ela vaga, como que sem querer, sem sistema, completamente intempestiva e surpreendente, como a boa poesia, a que não se quer
previsível. E como o kilométrico caochorrinho da marafona guaratubense, que estica num kilométrico diminutivo (tomado, flor da terra, do guarani, cuja salpicada irrupção intensifica a temperatura poética do relato) a microscopia da sua grandeza, nos arrasta e seduz com o movimento da sua cauda bifurcada, como se fosse uma sereia fingindo ser manati, um manati fingindo ser sereia, e no fargulhar de escamas nos afogássemos, no êxtase iridescente deste mar vasto e profundo.
Por último, como ler Mar Paraguayo? Aqueles que tem obsessão pelo argumento (que existe, mas é tão indeciso e emaranhado quanto a matéria porosa que o compõe) e deixam de lado o elemento poético das evoluções e mutações da língua, perdarão o melhor, como esses leitores de romances melosos (mal) traduzidos que se contentam com o resumo mastigado. Mar paraguayo não é um romance para se contar por telefone.

São Paulo, setembro de 1992

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